Westworld | Adaptar é Necessário

16 de março de 2020

11minutos de leitura

Atenção: há spoilers das duas primeiras temporadas da série Westworld e do filme original que a inspirou. Leia por sua conta e risco, sabendo que esses prazeres violentos trazem fins violentos. 

Poucas adaptações atingem o sucesso em sua transição do cinema para as séries como Westworld, indo da ficção científica carregada de ação ao drama existencial. Similares em vários aspectos, as duas versões também divergem drasticamente em outros, o que traz de volta o eterno debate sobre a importância de adaptar um material para novos veículos e cenários sociais, mas para tal precisamos de contexto.

Westworld: Onde Ninguém tem Alma (título brasileiro) chegou aos cinemas em 1973, com roteiro e direção de Michael Crichton, um nome bastante respeitado pelos fãs de ficção científica, responsável por obras literárias como O Enigma de Andrômeda e O Parque dos Dinossauros, que logo viriam a ser adaptados para o cinema.

A obra trouxe um conceito intrigante, imaginando um parque de diversões interativo onde você pode criar a experiência de épocas diferentes, como viver os tempos do velho-oeste, por exemplo. Para isso, uma companhia chamada Delos preenche esses parques com robôs de aparência humana realista capazes de interagir com os visitantes, até mesmo de forma íntima. 

Ator Yul Brynner na versao original de Westworld Onde Ninguem tem Alma
Yul Brynner

O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, rendendo uma continuação, Futureworld (intitulado no Brasil como o desnecessariamente longo Mundo Futuro: Ano 2003, Operação Terra) em 1976, mas esse não contava com o envolvimento de Crichton. Para continuar a franquia, a primeira tentativa de levar a história para a TV aconteceu em 1980, com Beyond Westworld. Servindo como um spin off do filme original, a série foi rapidamente cancelada, tendo produzido apenas cinco episódios. 

Por um tempo, a animação do público para novo material da franquia diminuiu, até que em 2013 o canal por assinatura HBO confirmou uma nova série inspirada no filme, dessa vez comandado pelo casal Jonathan Nolan e Lisa Joy, com produção de J.J. Abrams, intitulada apenas Westworld. A estréia aconteceu em 2016, com uma temporada tão elogiada pela crítica quando o filme original, talvez até mais. E é por isso que pretendo debater um pouco os principais pontos divergentes entre o filme clássico e a adaptação seriada da HBO, que para muitos (incluindo o autor desse texto) consegue superar sua versão original em vários aspectos. 

A série começa com a vantagem de ter um orçamento visivelmente superior ao filme original. Enquanto o longa sofreu nas mãos do estúdio MGM para conseguir $1,25 milhões, a HBO arrecadou estimados $100 milhões para sua temporada de estréia. É curioso como mesmo dividindo igualmente o valor entre cada um dos dez episódios da série, ainda há um investimento maior que o do filme. Mas o valor da série não era apenas monetário, ela veio com uma equipe mais profissional (Crichton ainda era um diretor iniciante quando seu filme foi lançado), carregando uma direção de arte belíssima, assim como figurino e cenografia, sem contar a excelente música de Ramin Djawadi. 

Similaridades e Referências

É difícil resistir a tentação de colocar algumas referências ao material original em qualquer adaptação, e Westworld não é exceção. Uma das primeiras similaridades envolve a dupla de protagonistas do longa, Peter Martin (Richard Benjamin) e John Blane (James Brolin), que decidem se aventurar no mundo do velho oeste, mas enquanto Martin parece relutante em se entregar totalmente à experiência, Blane é um veterano confiante e ajuda seu amigo a aproveitar o lugar da melhor maneira. Esses dois possuem traços que podemos associar facilmente aos personagens William (Jimmi Simpson) e Logan (Ben Barnes) na versão da HBO, respectivamente.

A principal diferença na adaptação é que William tem uma ligação maior com Logan, sendo seu cunhado e possível herdeiro dos negócios da família, que possui investimentos no parque temático. Para criar uma conexão ainda maior, a versão mais velha de William, apelidada de Homem de Preto (Ed Harris), é uma clara referência ao principal antagonista do filme, o Pistoleiro, interpretado por Yul Brynner. Se no filme ele é um robô intimidador, na série passa a ser humano – mas não menos assustador.

Atores James Brolin e Richard Benjamin no filme Westworld Onde Ninguem Tem Alma
James Brolin e Richard Benjamin

Outro personagem importante para a série é Maeve, dona de um bordel chamado Mariposa. Também temos um bordel na versão cinematográfica, mas não com o mesmo nome, e ele é comandado por uma Miss Carrie, papel desempenhado por Majel Barrett, mais conhecida pela franquia Jornada nas Estrelas. Além de manter alguns personagens, mesmo que alterados, a série segue com o nome Delos para a companhia que financia e contribui para a criação de vários parques. 

Há muitas referências ao longo da produção da HBO, mantendo alguns conceitos e elementos, como a sala de customização, onde você deixa sua roupa para trás e assume um traje mais apropriado com a temática do parque de sua escolha. No filme, o momento em que os protagonistas trocam de roupa serve como um olhar mais mundano dos bastidores, enquanto a série transforma uma simples decisão entre a cor de um chapéu em desenvolvimento de personagem, prevendo a eventual mudança de caráter entre William e o Homem de Preto. 

Pequenos detalhes do filme foram usados na série, como a informação de que os robôs podiam ser identificados pela mão (no longa, elas entregam os robôs; na série isso é mencionado como “um problema antigo que a empresa não tem mais com suas criações”) ou a cena em que o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins), o criador do parque na versão para a TV, controla uma serpente com um comando de voz, espelhando uma sequência do filme em que John Blane é atacado pelo mesmo animal.

Por falar em Ford, a presença de Anthony Hopkins no elenco já é indício de algo grandioso, então é claro que seria uma oportunidade perdida não deixá-lo roubar um pouco a cena com longos monólogos e debates filosóficos com seu companheiro de trabalho, Bernard (Jeffrey Wright). Pelos nomes Ford e Bernard podemos ver também a forte influência da literatura, já que o nome dos dois foi tirado do clássico da ficção científica, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Anthony Hopkins e Jeffrey Wright na serie WESTWORLD, adaptacao do filme classico
Anthony Hopkins e Jeffrey Wright

Entrando em Westworld

Três parques são introduzidos no longa original e as temáticas são Medieval (no contexto europeu), Império Romano e, o principal, Velho Oeste, Westworld. Ainda que pareça pouco em comparação com a série (que já mencionou ter o dobro de parques), estamos falando de um filme de aproximadamente uma hora e meia, então a decisão foi desenvolver apenas os mundos Velho Oeste e Medieval, e mesmo assim, o Medieval pode ser considerado quase irrelevante no longa.

Depois de introduzido, tudo que fazemos no parque Medieval é seguir um casal em algumas cenas cômicas e sem conexão alguma com o drama dos verdadeiros protagonistas, Peter e John. É uma ótima proposta tentar nos colocar em novos mundos, mas o filme não parece saber como equilibrar as narrativas que realmente importam, e isso rende um ritmo bastante cansativo. 

O filme alterna entre esses dois parques, mas também dá um pouco de atenção aos bastidores, mostrando a equipe de pesquisa e vigilância em sua sala branca comandando tudo. Talvez mais dessa equipe e menos do mundo Medieval pudesse entregar uma trama objetiva e sem excesso de tramas desnecessárias.

Quanto à série, é mencionada a existência de mais de um parque, mas a primeira temporada sabe que os personagens são mais importantes, então ela dá atenção exclusiva ao Velho Oeste. É apenas em sua segunda temporada que Westworld arrisca revelar dois novos parques: Shogun World, inspirado no japão feudal; e The Raj, recriando a Índia dominada pelos ingleses.

Questionando a natureza das adaptações

Ator Ed Harris na serie Westworld da HBO
Ed Harris

Adaptar não é apenas mudar alguns nomes e referenciar o material original. A transição de um formato para outro pode se fazer necessária por vários motivos, talvez uma releitura completa de uma obra, ou apenas uma atualização contemporânea, em alguns casos chega a ser uma corrupção total do original para elaborar uma crítica, mas o que vejo em Westworld é um caso em que a adaptação serve para explorar de maneira diferente os elementos da versão anterior, podendo aprimorá-los, trazendo um debate maior e até mais relevante através de temas que o original poderia ter estabelecido. 

A adaptação da HBO altera e complementa algumas informações introduzidas no filme. Agora que termos como “sintético” e “inteligência artificial” fazem parte de nosso cotidiano, o que antes era conhecido como robô passa a ser chamado de Anfitrião, ou seja, essa é a denominação para os andróides prontos para receber os visitantes humanos, esses apelidados de Hóspedes. 

Por falar nos personagens, esse foi um dos maiores acertos da série. No filme temos o implacável Pistoleiro, muito bem interpretado por Yul Brynner, com uma presença forte capaz de causar tensão em qualquer ambiente. Mas Ed Harris não fica atrás com seu Homem de Preto, que além de intimidador é um homem perturbado pelos demônios do passado, tão comprometido com os mistérios de Westworld ao ponto de colocar sua vida e a de outros humanos em risco. 

Seguimos o ponto de vista de dois humanos com atitudes contrastantes na versão original, mas isso é deixado de lado assim que o longa se transforma em uma batalha entre os robôs defeituosos e eles. Na adaptação, os personagens tem características mais complexas, e assim observamos os dilemas existenciais de cada um, até mesmo dos Anfitriões, constantemente questionando sua realidade por conta de uma inteligência capaz de se adaptar (oferecimento de seu criador, Dr. Ford, fascinado pelas máquinas ao ponto de permitir que atinjam uma consciência própria). Isso não quer dizer que os episódios evitem sequências de ação, e essas são ótimas, mas a promessa da série é uma análise sobre a importância da identidade. 

Outro avanço em questão de elenco e personagens é a presença de mulheres em papéis que não sejam apenas o de uma esposa entediada ou prostituta, as duas únicas opções no filme, que ao menos dá algumas falas para Majel Barrett, interpretando uma dona de bordel. Enquanto isso, a série é praticamente protagonizada por mulheres, o destaque indo para a dupla Dolores (Evan Rachel Wood) e Maeve (Thandie Newton), duas androides em busca de uma narrativa própria, mas apresentando métodos distintos para atingir a liberdade.

James Marsden e Evan Rachel Wood na serie Westworld da HBO
James Marsden e Evan Rachel Wood

Em 1973, Michael Crichton dirigiu um filme cheio de conceitos envolventes e efeitos visuais impressionantes para a época, mas talvez Westworld tenha realmente mostrado seu verdadeiro potencial na transição para o formato seriado, onde os elementos do longa são explorados com mais atenção, e debates existenciais tomam conta de uma narrativa cada vez mais relevante para tempos em que um mundo similar ao de Westworld não parece tão ficção científica assim.

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