Branco Sai Preto Fica | O trauma da perda de identidade

Branco Sai Preto Fica | O trauma da perda de identidade

23 de outubro de 2019

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Adirley Queirós é hoje uma das maiores referências do cinema de Brasília, cidade natal do diretor e cenário para todos os seus filmes. Corajoso em seus comentários, sem deixar de lado a eloquência, costuma traduzir sua experiência de vida crescendo na cidade-satélite Ceilândia para suas obras, debatendo questões arriscadas, mas pertinentes. Em ação desde 2005 com o curta Rap, O Canto da Ceilândia, foi apenas em 2014 que finalmente conquistou a atenção do público através de seu longa Branco Sai, Preto Fica.

A inspiração principal para o filme vem de um incidente da década de 1980, quando policiais invadiram um ginásio referência para os cidadãos chamado Quarentão, onde os jovens costumavam se divertindo fazendo um baile de música negra. A violência dos policiais resultou em várias pessoas machucadas, além de acabar amputando a perna de um dos moradores e deixar outro paralítico.

As duas vítimas, Marquim da Tropa e Shokito (depois chamado de Sartana), assumem a responsabilidade de reviver o trauma atuando no filme, que procura uma forma de reparação ao apresentar uma trama na qual os dois descobrem uma maneira agressiva de se vingar do estado, mesmo que esse tenha adquirido características mais fascista por conta da decisão do diretor em utilizar elementos de ficção científica para transformar a cidade em uma distopia, com direito a passaportes para transitar entre os distritos e guerras entre facções.

Branco Sai, Preto fica

Queirós usa arquétipos da ficção científica para fortalecer algumas das suas críticas, chegando a inserir no filme o viajante temporal Dimas, que precisa reunir informações capazes de influenciar o futuro de 2073, no qual uma “vanguarda cristã” toma o poder do estado. Isso logo deixa evidente como a obra não se acanha em apontar culpados e ir direto aos seus alvos, o que o próprio diretor não tem vergonha de assumir, ostentando uma postura radical que talvez seja essencial para que possa provar seu ponto.

Para Queirós, o Quarentão foi um dos maiores polos de formação de identidade da cidade, e essa é uma das razões pela qual a polícia decidiu destruir o lugar, para perpetuar uma narrativa de segregação racial e social. Até mesmo o título, Branco Sai, Preto Fica, tem um duplo sentido para o diretor, no qual ele recebe um significado ligado diretamente a abordagem dos oficiais na década de 1980, mas também é uma forma de representar uma dívida histórica que não só o estado, mas o país precisa admitir.

O filme é uma mescla entre meta-documentário e ficção científica, o que em questão de enredo funciona bem, mas não é sempre que esses elementos casam perfeitamente na montagem. A proposta inicial do diretor era de fazer um documentário sobre os eventos no Quarentão, mas ao ver como a história começava a apresentar contornos mais fabulosos, abraçou a ficção científica, não só na distopia do texto, mas no visual, criando ambientes quase cyberpunk, mas com uma individualidade marginal, sem a glamourização tecnológica quase fetichizada de Hollywood, aqui enchendo um estúdio de gravação musical com fios e cabos elétricos espalhados ou mostrando a importância de uma instalação onde um dos personagens recicla e conserta próteses para a comunidade.

Ainda que Branco Sai, Preto Fica tenha um excelente trabalho fotográfico com a luz natural em contraste com os ambientes cobertos em metal distorcido, e saiba aproveitar o baixo orçamento como poucos (a nave interplanetária do viajante do tempo é apenas um contêiner, por exemplo), a mudança na abordagem original do diretor, de fazer um documentário, acaba se manifestando por conta da falta de interação entre alguns núcleos e o tom que pode destoar um pouco em alguns momentos.

Branco sai, preto fica

Ainda assim, esse é um filme que merece ser exaltado pelas suas vitórias, a maior delas é contar uma história muitas vezes negligenciada, fazendo com que a sociedade use uma de suas armas mais poderosas, a arte, para acabar com a ascensão de uma mentalidade fascista, mesmo que literalmente.

Branco Sai, Preto Fica é atrevido e ao mesmo tempo melancólico, uma obra que divide opiniões mas não esquece de nos instigar constantemente.

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