The OA | O jardim de caminhos bifurcados (através da dança)

The OA | O jardim de caminhos bifurcados (através da dança)

4 de fevereiro de 2019

9minutos de leitura

“Existir é sobreviver a escolhas injustas”

The OA é um grande mistério para seus fãs, não só pela sua narrativa mas pelo tempo que está demorando para lançar sua segunda temporada. A série foi lançada pela Netflix em 2016 e até o momento de encerramento desse texto, tudo que temos é a promessa de que coisa nova está por vir. Eu fui um dos que deixou a série passar despercebida quando foi lançada, então decidi me atualizar antes que a nova temporada saia, finalmente. Havia uma dúvida sobre escrever sobre a série, mas depois de ler algumas reações negativas pensei em falar um pouco sobre ela, porque achei uma das séries mais intrigantes que já vi.

Antes de tudo, eu vou dar uma recapitulada para quem não lembra (haverão leves spoilers ao longo do texto, mas nada que prejudique a experiência).

A jovem Praire Johnson (Brit Marling) volta para casa depois de desaparecer por quase uma década. O mais chocante não foi ela ter sido encontrada depois de pular de uma ponte, mas sim a revelação de que ela recuperou sua visão de alguma maneira, visão essa que perdeu depois de uma experiência quase-morte na infância. Sua história fica conhecida e a cidade não fala de outra coisa, mesmo que todos os detalhes permaneçam um mistério. Isso pode ser uma boa ideia, já que sua narrativa envolve uma infância na Russia, um cientista obcecado por um experimento peculiar, um grupo mantido em cativeiro, uma entidade mística e um movimento de dança que pode influenciar a maneira que interpretamos o conceito de tempo e espaço. Praire agora se intitula a “OA” e ela está pronta para compartilhar os eventos que mudaram sua vida e podem mudar a de um grupo que, ao contrário de muitos, acredita no milagre da jovem.

Criada por Brit Marling (que estrelou alguns filmes sci-fi de baixo orçamento muito bons, como A Outra Terra, de 2011) e Bat Batmanglij (A Seita Misteriosa, de 2011, estrelado por Marling), essa é a primeira vez que a dupla produz uma série, e não fez um trabalho ruim.

O que me atrai em premissas como a de The OA é a forma como todos os elementos são apresentados, como o narrador não confiável, um artificio bastante utilizado quando uma produção decide criar a sensação de confusão não apenas em seus personagens, mas em quem assiste. A narração é uma parte crucial da série e a maior parte da temporada se passa nas interpretações do que Praire nos conta. Ao lado da “OA” seguem cinco personagens: quatro jovens da mesma escola e, por incrível que pareça (como se já não estivesse estranho), uma das professoras. Todos distintos em personalidade, mas igualmente envolvidos no que Praire tem a dizer. Em questão de elenco, a série tem uma equipe competente mas os verdadeiros destaques são a própria Brit Marling e Jason Isaacs, esse segundo interpretando o Dr. Hunter Aloysius Percy (ou HAP, para ser mais rápido).

The OA

Outro ponto alto da série é a direção de arte. Alguns visuais são simplesmente incríveis e contribuem para o mundo de The OA tão bem que acabaram se tornando uma de suas principais características. Há uma atmosfera misteriosa até mesmo na cidade, que costuma ser retratada com longas estradas de curvas intermináveis e uma escuridão quase melancólica que assola as noites — talvez uma ligação com o que a trama aborda nos episódios seguintes. Ao lado disso, aproveito para levantar a importância do departamento musical. Além da composição de violino que embala o primeiro episódio, algumas músicas fizeram a diferença, dando enorme impacto emocional, como Full Circle, da banda HÆLOS, e a depressiva Downtown, da Majical Cloudz, que conclui o quinto episódio.

The OA é uma mescla de gêneros (mesmo que esse conceito seja complexo). A série é uma ficção científica na superfície, com seu caráter especulativo sobre o que entendemos de física, por exemplo. Mas há o elemento fantasioso, a protagonista não deixa de tentar reafirmar a existência de uma entidade mística que a conferiu com uma informação valiosa sobre uma forma de nos comunicarmos com outras dimensões através de “movimentos rítmicos”.

Parece bizarro. E é. Mas faz sentido.

Solidão, abuso e trauma são alguns dos temas principais da série, mas ela também entra em debates conhecidos da ficção científica, o principal deles sendo a interpretação de muitos mundos, um conceito da física quântica que sugere a possibilidade de existirem múltiplos universos paralelos.

Apresentada por Hugh Everett III, a interpretação de muitos mundos parte da premissa que vivemos em um multiverso, onde o tempo está em constante ramificação, o que acaba criando mundos diferentes, cada um com uma versão diferente do que você é. Essa é uma maneira bem simplificada de explicar, mas é basicamente essa a ideia. É um conceito absurdo; nem todos o apoiam, é claro, mas ele poderia contribuir para a resposta de várias questões da física quântica — por exemplo, a interpretação de Copenhague, responsável por afirmar que pode haver mais de um estado para um fenômeno não observado. É como o famoso exemplo de Schrödinger: um gato em uma caixa está vivo e/ou morto ao mesmo tempo, a única confirmação vem através da abertura da caixa. Na interpretação de muitos mundos o gato teria se divido em dois caminhos, um no qual esteja vivo e em outro, morto.

É claro que, como o nome diz, é apenas uma interpretação. Não há (ainda) fatos que comprovem os muitos mundos, e também existe o Paradoxo de Olbers, que utiliza a escuridão do céu para descartar a possibilidade de “muitos mundos”, mas The OA consegue escapar disso utilizando outras dimensões e o argumento de que a passagem de uma linha temporal para outra seria “invisível”.

Na série, a OA recebe movimentos (que acabamos chamando de dança, mas isso seria resumir demais o contexto, então vou chamar de performance, para ser mais preciso) através de visões e experiências com uma entidade chamada Khatun. Estes movimentos são capazes de realizar coisas inacreditáveis, como curar ferimentos e até abrir um caminho para outras dimensões. Khatun assume a forma feminina e é um compilado de várias culturas; desde seu nome, de origem árabe, até a marca no formato braile em seu rosto, em alemão. Ela vive sozinha, aparentemente, em um espaço coberto de estrelas, como se caminhasse por entre as galáxias, e é ela quem dá o título de OA para Praire (que mais tarde descobrimos ser uma abreviação de Original Angel: o anjo original). É um conceito “fantasioso” que bate de frente com o debate científico que personagens como o Dr. Hunter carregam, mas que ainda assim faz total sentido narrativo, principalmente quando lembramos que este é o ponto de vista de Praire, então talvez tudo isso seja apenas uma forma de lidar com o trauma. É só ter em mente que nenhum outro personagem teve contato com Khatun. Mas aí estamos entrando em território onde o spoiler é mais frágil, então vou me conter.

Praire sendo acalentada por Khatun

O sexto episódio da primeira temporada é intitulado Forking Paths, oque fortalece ainda mais a relevância das realidades alternativas na história. Esse título é uma referência à “O jardim de caminhos que se bifurcam” (The Garden of Forking Paths, em inglês), o conto literário de Jorge Luis Borges que talvez seja mais importante pra série do que se imagina.

A história segue o Dr. Yu Tsun, um professor que também é um espião correndo contra o tempo para evitar ser capturado por um agente do governo. No meio do caminho encontra o Dr. Stephen Albert, que é fascinado por um ancestral de Tsun, um homem que dedicou sua vida construindo um labirinto e escrevendo um romance absurdo e contraditório onde, entre outras coisas fora do comum, personagens estão mortos em um momento para surgirem vivos em outro. Essa é uma das coisas que The OA também trouxe para sua narrativa, já que é apenas através das experiências de quase morte que descobrimos cada vez mais sobre o mistério dos movimentos.

No conto, Albert diz para Tsun como interpreta a obra de seu ancestral:

Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?” 
Refleti um momento e respondi, “A palavra xadrez”. 
“Exatamente” disse Albert, “O jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo […] é uma imagem incompleta, mas não falsa […] seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange 
todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois”.
(Baseando na tradução da versão: “ Obras completas Jorge Luis Borges”, de 1998, da editora Globo S.A.)

Albert entende que o labirinto sugere uma bifurcação temporal. Ele explica como na literatura, um personagem pode escolher apenas uma das alternativas que lhe são apresentadas; mas aqui, um personagem escolhe — simultaneamente — todas elas. Aqui ele cria diversos futuros que proliferam e bifurcam também (no cinema ou em séries, costumam explicar esse conceito utilizando um galho de árvore como exemplo, com os ramos crescendo para novos caminhos e criando novas realidades. A série Legion, baseada nos quadrinhos da Marvel,faz isso e também fala bastante sobre a interpretação de muitos mundos, sem contar que é uma ótima série e merece ser assistida).

Em The OA, os movimentos podem ser apenas uma forma de Praire lidar com o trauma de ter sido raptada. A série deixa em aberto a veracidade da história da OA, mas isso não anula como ela afetou o grupo que ouviu sua história. Essa é uma série com vários temas intrigantes e ótimos personagens, então é óbvio que eu estou ansioso para a segunda temporada.

CADÊ A SEGUNDA PARTE DE THE OA?

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ps: Antes que alguém diga algo sobre o desfecho da temporada, que alguns consideraram “ter vindo do nada”, já digo que discordo completamente da afirmação. Houveram vários indícios do que estava por vir, era só prestar atenção nos sonhos de Praire e no que era dito nas rádios. Se quiserem, posso fazer um texto só sobre isso ¯\_(ツ)_/¯

ps²: O título do conto de Borges também pode ser traduzido como “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”, mas trocar “veredas” por “caminho” fez mais sentido dentro da proposta da série.

Fontes:
*Para quem tiver curiosidade, o curta de Borges pode ser encontrado aqui, mas em inglês. 
*Hipótese de Muitos Mundos: https://www.allaboutscience.org/portuguese/hipotese-de-muitos-mundos.htm e https://hypescience.com/interpretacao-de-muitos-mundos-vai-dar-um-no-na-sua-cabeca/

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