O Lagosta | Distopia da Rotina e Indiferença

O Lagosta | Distopia da Rotina e Indiferença

19 de março de 2020

3minutos de leitura

Explorar alguns subgêneros da ficção científica pode ser atraente por conta dos diversos elementos e maneiras nas quais podemos aproveitá-los. Uma narrativa bastante popular é a distopia, geralmente classificada pela forma que apresenta um mundo similar ao nosso, mas desprovido das mesmas regras encontradas fora da obra, muitas vezes servindo como uma crítica de estruturas sociais, políticas ou religiosas.

É comum encontrar distopias onde um governo totalitário controla as ações de uma sociedade através da força militar, mas há também aquelas onde as pessoas são subjugadas mentalmente, sendo obrigadas a procurar conforto em uma situação desoladora, sofrendo com a angústia de se encaixar em regras que vão contra tudo que você é ou acredita. Podemos ver isso no filme O Lagosta (The Lobster), de 2015, dirigido por Yorgos Lanthimos. 

Em um futuro próximo, a solidão é proibida e as pessoas solteiras devem frequentar O Hotel, onde terão quarenta e cinco dias para encontrar um par romântico, ou são transformadas em um animal (de sua escolha) e abandonadas para lutar por suas vidas em um mundo aparentemente seguro, mas a hostilidade está onde menos se espera. Na trama, seguimos a estadia de David (Colin Farrell), ainda confuso com as regras, mas certo de que quer ser transformado em uma lagosta caso não encontre uma companheira. 

O Lagosta

“Lagostas vivem por mais de cem anos. Elas têm sangue azul, como os aristocratas, e permanecem férteis a vida inteira. Eu também gosto do mar. Sei nadar muito bem desde jovem”

A primeira característica a chamar atenção no filme é a direção de Lanthimos, conhecido por sátiras cheias de humor negro, como Dente Canino (2009) e o recente A Favorita (2018). Seus personagens apresentam uma indiferença com o mundo em volta, chegando a assumir um mesmo tom de voz, respondendo a uma cena de suicídio da mesma maneira trivial com a qual se pede um prato em um restaurante (“Agora há sangue e biscoitos em todo lugar”).

Assim como os personagens, a direção de arte de Thimios Bakatakis carrega uma bela fotografia de um mundo visualmente similar ao nosso, mas revelam o isolamento emocional de uma sociedade tentando se encaixar em padrões impossíveis, e podemos ver como o próprio filme assume uma imparcialidade com seus planos abertos e câmera estática, indicando uma interferência mínima no universo de David. 

Ainda que seja um mundo de desdém, o exílio social é repreendido ao ponto de ser ilegal, e assim temos a principal motivação dos personagens, todos procurando por um par romântico, independente de haver amor na equação, e em busca da aceitação, mesmo que obrigatória. É visível o desespero dos membros do Hotel, com um deles chegando a bater a própria cabeça em um criado-mudo para manter um sangramento nasal, isso porque a única companheira que lhe pareceu remotamente envolvente sofre da mesma coisa, e ter algo em comum é um dos maiores sinais de uma relação forte e longeva.

O Lagosta

Por conta dos objetivos claros e a aflição para encontrar alguém e ser reintegrado na sociedade novamente, esse é um mundo sem espaço para a ambiguidade, apenas a certeza. Em uma cena, David pergunta sobre a possibilidade de se registrar como bissexual, mas é informado que “de acordo com vários problemas operacionais”, o Hotel oferece apenas uma escolha entre heterossexual e homossexual. 

“Um lobo e um pinguim jamais poderiam sair daqui juntos. Seria absurdo. Pense nisso”

O Lagosta é um olhar absurdo, porém intrigante, sobre as relações humanas. Com cada nova tentativa de se aproximar de alguém, David descobre mais sobre ele mesmo e tudo o que vem abrindo mão para fazer parte de algo maior, abandonando sua própria identidade, e nenhum exemplo deixa isso mais claro que a cena final, onde o filme conclui nos deixando com um questionamento sobre nossas próprias escolhas e até onde vamos para mantê-las. 

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