A Narrativa Gráfica em Watchmen

A Narrativa Gráfica em Watchmen

26 de junho de 2019

9minutos de leitura

Spoilers de Watchmen

Watchmen é uma das maiores obras dos quadrinhos. Uma das mais aclamadas e estudadas da história. Todos sabem sobre sua fama, como esteve na lista de melhores leituras da Times, inspirou um longa dirigido por Zack Snyder (que não será o foco aqui) e mudou a percepção do público sobre quadrinhos e seu potencial.

Watchmen foi lançada entre 1986 e 1987 através de 12 edições pela DC Comics. Não demorou muito para a onda das graphic novels tomar conta do mercado com a chegada de outros grandes lançamentos como SandmanO Cavaleiro das Trevas ou A Queda de Murdock. Assim, a série logo foi encadernada em um único volume. Os roteiros são de Alan Moore e a arte é de Dave Gibbons, e o resultado é um comentário sociopolítico cheio de acidez e ironia, onde assistimos um bando de super heróis aposentados lidando com um possível assassino atrás dos encapuzados de outrora. É um grande mistério cheio de subtexto sobre a guerra do vietnã, a guerra fria, a paranóia e histeria coletiva, a contracultura norte-americana e muito mais.

Enquanto muitos mencionam a violência, sexo, ótimos personagens e maravilhosa arte de Dave Gibbons, há um elemento ignorado por alguns que sempre me impressionou: sua estrutura narrativa e gráfica. Vamos começar com calma.

A estrutura de 3 atos é a mais básica e pode ser encontrada nas pequenas tiras de jornal. Nós temos o primeiro ato, o “Começo”, onde a informação é estabelecida para prover contexto para a história. Nos perguntamos onde, quando, quem, qual, por quê… Com o contexto definido temos nosso segundo ato, o “Meio”, onde os personagens tentam alcançar algum objetivo e encontram um conflito. Geralmente é nessa parte onde começamos a entender a premissa, o que está sendo construído. O conflito traz a potencial “Morte da premissa”, onde ela chega no seu terceiro ato, ou o “Fim”, onde há uma resolução para o conflito.

Act Story Structure

Mas essa é apenas uma maneira de ver as coisas. Há muito mais em uma narrativa do que apenas três atos. Há muito mais do que início, meio e fim e nem sempre nessa ordem. Ao escrever um roteiro pensamos em como desenvolver os personagens e como isso fará parte do enredo. Se você é Alan Moore, seus roteiros são gigantescos e extremamente detalhados. Só para você ter uma ideia, ele fez quatro páginas descrevendo apenas a primeira página da HQ. Cada ângulo, balão de diálogo e até sensação de textura são minuciosamente apresentados no roteiro. Mesmo que o autor tenha declarado dar liberdade para os desenhistas, fica bem claro que o que ele quer, ele quer precisamente do jeito que está em sua mente. Essa é uma obra onde o diabo realmente está nos detalhes, ainda mais considerando como o clímax da HQ é previsto ao longo de toda a história através de diálogos inteligentes e a sutileza do autor em construir cada pedaço de seu universo.

Uma curiosidade que me faz respeitar Alan Moore ainda mais é sua decisão em usar as páginas finais dedicadas aos anúncios da editora para desenvolver ainda mais do universo de Watchmen, chegando até a um exercício de metalinguagem quando aproveita um desses espaços para fazer um anúncio de um produto da (fictícia) indústria Veidt, com relatórios sobre bonecos, perfumes e a equipe de marketing e desenvolvimento. Além desses, temos alguns capítulos de amostra para o livro de Hollis Mason, Sob o Capuz.

Voltando à estrutura, uma das mais comuns na literatura é a estrutura dramática apresentada por Gustav Freytag, que desenvolveu um esquema quinário para os atos, ou seja, de cinco atos. Como podemos ver na imagem, temos introduçãoação em ascensão, o clímax, a ação em declínio, chegando no desfecho, ou resolução. Podemos também esperar uma mudança neste esquema se considerarmos o modelo funcional de Propp, que usa as atitudes dos personagens como ações que definem a narrativa. Mas é um conceito mais longo e complexo que eu vou abordar no futuro e sobre uma outra obra. Voltando para Gustav, temos estes cinco níveis com nomes auto-explicativos.

Freytag Pyramid

Se formos colocar Watchmen nesta estrutura de forma bem crua, seria mais ou menos assim: Temos a introdução, onde descobrimos que o Comediante foi encontrado morto, o que causa uma comoção na comunidade de encapuzados e nos leva direto para a Ação em Ascensão, onde a trama se desenrola e o mistério começa a ser investigado para que no Clímax tenhamos uma grande reviravolta ou mudança capaz de afetar o futuro da história. Com a ação em declínio, vemos o desenrolar do clímax, o resultado das ações de Adrian. No fim, a Resolução, onde vemos como aquele mundo ficou depois de toda a jornada dos heróis e sua influência. O último painel mostra o diário de Rorscharch, e sabemos que ele andou escrevendo sobre tudo que aconteceu para que o mundo ficasse daquele jeito. O balanço das coisas pode mudar mais uma vez.

Podemos ver a maneira que Alan Moore se apropria deste modelo, até mesmo na primeira página da HQ, começando a história DEPOIS do assassinato do Comediante. O que chamamos de Inciting Incident, ou o “incidente que motivou a trama”, acontece logo de cara. Isso faz com que Watchmen deixe a introdução dos personagens principais para depois, durante o enterro do Comediante, e pule direto na ação em ascensão enquanto assistimos os legistas conversando sobre sua morte, o que também serve como a introdução para o mundo do quadrinho.

Mas deixando um pouco de lado esse debate sobre atos, devemos lembrar que estamos falando de um quadrinho, que é uma forma de arte com características únicas, então vamos entrar um pouco no debate sobre ritmo e como a estrutura narrativa funciona em uma HQ. Para isso, vou precisar da ajuda de Scott McCloud. Para quem não conhece, McCloud é um dos maiores nomes no debate teórico sobre quadrinhos, ele é basicamente o Robert McKee da nona arte, então ele sabe o que fala.

Actions

Em Desvendando os Quadrinhos, McCloud fala um pouco sobre as transições que podem ser feitas entre os painéis de uma HQ. Seja de momento para momentoação para açãosujeito para sujeitocena para cenaaspecto para aspecto e non sequitur (imagem ao lado), que é uma expressão para falácia lógica, mais comum em quadrinhos com uma abordagem abstrata — mão confundir com as viagens alucinógenas de Grant Morrison — ou pode confundir, dependendo de qual HQ estiver lendo. Piada à parte, é muito mais fácil encontrar quadrinhos onde o foco está na ação para ação, sujeito para sujeito ou cena para cena, indo de alguém bloqueando um soco para devolver com outro na sequência, por exemplo.

Em Watchmen, temos um grande foco nas transições de momento para momento e sujeito para sujeito, com longos diálogos e a reação dos personagens a situação, desenvolvendo múltiplas tramas paralelamente. Para construir a ambientação do universo de Watchmen Moore também usa aspecto para aspecto, mais comum em mangás, geralmente servindo para estabelecer espaço ou a natureza do ambiente. É uma técnica que dá a impressão de ritmo mais lento e contemplativo, mas também traz um pouco de tensão, o que podemos ver muito bem feito nos painéis repetidos em páginas diferentes no quinto volume, intitulado apropriadamente como Terrivel Simetria.

Watchmen tem na sua maior parte uma distribuição de 9 painéis por página. Algumas vezes em uma narrativa linear, outras alternando entre tempo e espaço. O que alguns podem considerar uma decisão básica, eu considero brilhante, principalmente na forma como ele executa sua narrativa através desses nove painéis.

Quadrinho Watchmen

Uma das coisas mais curiosas no formato de 9 painéis é como ele estabelece um ritmo e depois causa um impacto maior destruindo o próprio modelo. Quando chegamos nas cenas mais impactantes da HQ, principalmente no clímax, vemos o uso de uma página completa para mostrar a importância daquele momento. É como diz Michael Brown em seu artigo sobre o quadrinho:

“As cenas de Dr. Manhattan divagando sobre seu passado revelam um desvio da forma de maneira única. Nos quadrinhos, nós esperamos que o tempo flua linearmente de painel para painel. Pulando para trás e para frente através do tempo entre os painéis, o leitor é inserido no conceito de tempo de Manhattan de uma maneira que poucos conseguem”

Quadrinho Watchmen

Há muito que pode ser estudado em Watchmen, mas eu adoro ver como Alan Moore e Dave Gibbons estruturaram sua HQ para diferenciá-la de tudo que era famoso na época, como sacrificar os anúncios por mais história, desenvolver as capas com imagens sem ação ou que apelem para o grande público. Eles aproveitaram tudo que podiam fazer e fizeram, até mesmo criar um tipo de história onde a capa da edição já fazia parte da narrativa (o primeiro painel de todas as edições é uma perspectiva ou ângulo diferente da arte da capa).

Esse foi um grande risco tomado pela dupla, mas como podemos ver é um que mexeu com o que conhecemos sobre quadrinhos até hoje. Watchmen não só trouxe novos leitores para a nona arte, essa é uma HQ que explorou o que pode ser feito com uma indústria que já é conhecida por imaginação ilimitada.

Quadrinho Watchmen

Essa foi uma rápida introdução para a narrativa gráfica de Watchmen. Se tiver interesse por mais matérias como essa, posso trazer mais nesse modelo. É só deixar nos comentários aqui ou nas redes sociais. Até a próxima!

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