Eles Herdarão a Terra | Racontos sobre a solidão

Eles Herdarão a Terra | Racontos sobre a solidão

6 de janeiro de 2020

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Depois de lembrar os primórdios da ficção científica produzida no Brasil através de Machado de Assis, com a obra Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, a editora Plutão realmente começa a explorar a pluralidade de vozes do país com a série Ziguezague. Com a proposta de entregar obras que contribuíram para a formação do gênero por décadas, somos apresentados a “Primeira Onda” da ficção científica nacional com Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz. 

Apresentando cinco contos (ou “racontos”, como Queiroz prefere chamá-los), Eles Herdarão a Terra alterna entre a ficção científica, ensaio político e relato sobrenatural, e por mais que sejam, em certo nível, abordagens distintas, o principal tema abordado pela autora é a solidão, presente em cada um dos contos.

Estamos numa época em que a solidão humana ganhou uma perspectiva capaz de produzir verdadeiras alucinações.

Com a intenção de abordar o absurdo, as histórias são divididas em três categorias: “Antecipação”, “Cotidiano” e “Sobrenatural”. A primeira é a mais rica em conteúdo, com narrativas um pouco maiores e detalhadas, sendo elas “A Universidade Marciana”, “O Carioca” e o conto que dá nome ao livro. Em seguida, com “Partido Nacional”, Dinah brinca com o “proverbial derrotismo brasileiro”. No fim, usa o conto “A Mão Direita” como ferramenta do absurdo além da compreensão humana. 

Mesmo que “Partido Nacional” seja uma sátira política curiosa em sua premissa e desenvolvimento, ou “A Mão Direita” traga uma escrita mais rebuscada, o verdadeiro destaque da coletânea são os três contos de ficção científica. 

Dinah Silveira de Queiroz
Dinah Silveira de Queiroz

Em “A Universidade Marciana”, Dinah aborda o primeiro contato com um olhar mais íntimo e introspectivo, questionando as motivações e as consequências de encontrarmos nova forma de vida. Ambientada em um Rio de Janeiro distópico, onde a “enchente fez unir o mar à lagoa Rodrigo de Freitas”, temos também uma forte presença da igreja, principalmente na figura do papa, que recebe todos no Vaticano para estudar melhor a situação. Esse teor religioso está tão presente nos contos de Queiroz quanto a solidão que aflige os seus personagens.

“Estávamos, então, no limiar da Era Interplanetária, mas a ciência ensinara, durante esse tempo todo, que só a Terra era habitada” 

Para “O Carioca”, Queiroz aborda os avanços no campo da cibernética, mas mesmo que a história introduza um cientista construindo o primeiro robô “viajante a Marte ou Vênus” (robô que dá nome ao conto), o verdadeiro apelo dramático da trama está na relação entre esse cientista e sua vizinha, uma viúva que acaba criando uma relação de afeto com as máquinas em seu apartamento. 

Chegando no principal conto da obra, “Eles Herdarão a Terra”, somos arrastados ao lugar perfeito para explorar a solidão que fascina Queiroz: um farol, localizado à vista de Guaratiba, outro ponto do Rio de Janeiro. É lá que Marcos trabalha, ao lado de seu velho pai, até que sua irmã, Tudinha, os visita. As coisas ficam estranhas assim que uma figura misteriosa surge com revelações assustadoras sobre o futuro da humanidade. 

O livro também tem espaço para algumas referências, não só literárias, como a menção de vários autores da Academia Brasileira de Letras, da qual a própria Dinah fez parte, mas também da ficção científica e de eventos como a famigerada transmissão de Orson Welles para a rádio CBS, em 1938, quando decidiu narrar o livro Guerra dos Mundos, ao vivo, e causou certa comoção (ainda que parte dela seja fabricada para aumentar o impacto da história). 

“Sempre haverá quem sustente que tudo partiu de um mero espetáculo de ficção científica, gênero muito popular então, mas agora totalmente esquecido”

Com uma narrativa lenta, mas carregada de tensão, essa é uma coletânea relativamente curta, principalmente considerando que apenas três contos são realmente ficção científica, mas ainda é atraente conhecer melhor o trabalho de Queiroz e suas diferentes vozes refletindo sobre a solidão carioca. Eles Herdarão a Terra é mais um resgate necessário feito pela editora Plutão, que não deixa de surpreender. 

Eles Herdarão a Terra

Eles Herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz.

163 Páginas; Editora Plutão, 2019

O livro também conta com um prefácio de Ana Rüsche, e a arte gráfica de Paula Cruz.

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