O Homem do Castelo Alto | As diversas realidades de Philip K Dick
Continue LendoRoberto Honorato
Um clássico de Philip K Dick sobre realidades e distopias alternativas
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“Está vendo o gato? Está vendo a cama?”
O Bokononismo pode soar complicado para alguns. A leitura dos livros sagrados pode elucidar um pouco qualquer dúvida que tenha sobre seu karass ou como as fomas tem afetado sua vida. Mas o mais difícil mesmo é aceitar que esta é uma religião fictícia, criada pelo autor Kurt Vonnegut, em seu livro, Gama de Gato. Pode soar como um choque, mas não desanime, não é como se a minha verdade tivesse que ser a sua verdade.
A obra de Vonnegut segue John (o Jonah, já que ele prefere assim) em sua procura por registros de pessoas que estiveram envolvidas direta ou indiretamente com o dia em que Hiroshima foi bombeada pelos Estados Unidos. John consegue entrevistas com os filhos de um dos principais responsáveis pela bomba atômica: Felix Hoenikker. O que poderia ser apenas um recorte de comentários sobre o cientista acaba se tornando um mar de revelações, mas também um oceano de incertezas e questões sobre o que é essa substância aparentemente poderosa chamada gelo-nove, por exemplo.
John não imaginou que a história tomaria este rumo ou que ele pararia na ilha de San Lorenzo, onde todos são adeptos do Bokononismo, uma religião baseada em uma existência consciente das mentiras de seu criador. Mas talvez a maior surpresa para John foi acabar se tornando um adepto.
A primeira frase que aparece nos livros de Bokonon é esta:
Cama de Gato, editora Aleph, 2017
“Todas as verdades que estou prestes a contar são mentiras descaradas”.
Meu conselho Bokononista é este:
Quem for incapaz de entender como uma religião benéfica pode ser baseada em mentiras também não vai entender esse livro.
Que assim seja.
Parece confuso, e é confuso. Vonnegut faz questão de explicar a terminologia e os dogmas de sua religião fictícia, mas não deixa de brincar com o conceito e a forma — irracional — como aderimos ao pensamento de uma figura religiosa (ou política) absoluta, o que rende as melhores piadas e os momentos mais engraçados do livro. Você pode fazer parte de um karass, equipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que estão fazendo; Mas se você é do tipo de pessoa que prefere apenas uma relação à dois e quer alguém para dividir seus ideais bokononistas, está pronta para um duprass, que é basicamente um karass formado por duas pessoas.
Cama de Gato consiste em 127 curtos capítulos, cada um apresenta um elemento com algum tipo de piada ou pelo menos preparação para uma, muitas vezes utilizando apenas duas páginas. A obra também traz várias canções e passagens do livro de Bokonon, muitas vezes lidos em forma de calipso, o gênero musical afro-caribenho (escolhido por ser representativo de Trinidad e Tobago, e por conta de Lionel Boyd Johnson, um negro, episcopaliano de batismo e súdito britânico da ilha de Tobago. Para a maioria ele é conhecido apenas como Bokonon). O livro de Vonnegut carrega muitas de suas marcas registradas, como o humor negro que ele insere no cotiado nos personagens, fazendo com que a tragédia seja mais um inconveniente do que uma… tragédia (não pensei em um sinônimo melhor). Há ironia espalhada durante toda a narrativa, e é assim que caímos nas situações mais hilárias da obra, como a própria relação de John com os habitantes de San Lorenzo e a bela Mona, a filha de “Papa” Monzano, o comandante da ilha.
Também há paralelos entre Cama de Gato e outras obras do autor. Um dos pensamentos do bokononismo diz que os parceiros de um duprass morrem com a diferença de uma semana um do outro, um conceito já utilizado em As Sereias de Titã. Mas a ligação mais direta com Sereias é revelada quando Bokonon escreve sobre ter trabalhado com a família Rumfoord, uma das peças mais importantes do texto.
Mas além de todas as piadas na superfície, há um debate mais íntimo na obra, envolvendo um dos capítulos mais tristes da Segunda Guerra Mundial, quando Vonnegut presenciou o bombardeio da cidade de Dresden, na Alemanha, um ataque que acabou completamente com a beleza do ponto turístico. O acontecimento serviu de inspiração para outro livro de Vonnegut, Matadouro 5, mas não ficou por aí, o autor continuou carregando o trauma em várias de suas obras. Em Cama de Gato os horrores da guerra são representados na figura de Hoenikker e sua criação, o gelo-nove, capaz de solidificar qualquer forma líquida. Uma invenção genial, com propósitos militares, que acaba parando nas mãos menos experientes que se pode imaginar. Mesmo com a abordagem cômica, fica clara a crítica e a indignação do autor com a neglicencia de figuras políticas e científicas tão poderosas.
O Décimo quarto livro [de Bokonon] é intitulado “O que um homem sensato espera da humanidade na Terra, dada a experiência dos últimos milhões de anos?”.
Não levei muito tempo para ler o Décimo quarto livro. Ele consiste de uma palavra e um ponto final.
É o seguinte:
“Nada”.
Vonnegut acabou trazendo muito da sua realidade para a literatura, como próprio Hoenikker, inspirado em Irving Langmuir, um estudioso na área da teoria atômica e também vencedor de um Nobel, assim como o personagem. Os temas de seus livros são embasados em traumas e muito de seu comportamento e atitudes mudaram por conta da Guerra. “Foi quanto eu perdi minha inocência, na verdade… Quando a bomba caiu em Hiroshima”, conta o autor*.
A abordagem cínica e quase provocadora de Kurt Vonnegut faz de Cama de Gato uma das leituras mais absurdas e instigantes que já fiz, com personagens cheios de personalidade e diálogos carregados de acidez. É um jeito inteligente de comentar mais uma vez sobre nossas noções de livre-arbítrio e crença, e como fingimos ter tudo em controle.
“Tudo deve ter um propósito?”, perguntou Deus.
“Certamente”, disse o homem.
“Então deixarei que você pense em um propósito para tudo isso”, disse Deus.
E Ele foi embora.
Cama de Gato (Cat´s Cradle),
de Kurt Vonnegut
Editora Aleph, 2017
Capa de Adalis Martinez
304 páginas
Tradução de Livia Koeppl
*Documentário “Kurt Vonnegut So It Goes” para o canal BBC sobre Cama de Gato e a Segunda Guerra, exibido em 1983:
Roberto Honorato
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