Astro City | Parte 1: A angústia do Samaritano e a Vida na Cidade Grande

Astro City | Parte 1: A angústia do Samaritano e a Vida na Cidade Grande

10 de maio de 2019

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Sempre que entro em algum debate sobre histórias em quadrinhos que surpreenderam com a abordagem do mito do herói, escuto respostas como Watchmen ou Planetary, por exemplo. Eu adoro essas duas obras, a primeira é escrita pelo maior roteirista da nona arte, e isso nem é um debate (pode vir nos comentários), mas nessas conversas, sinto falta de alguém defendendo a maravilha que é Astro City, e geralmente sou eu quem precisa dar o primeiro passo. Por isso, decidi criar logo uma sequencia de textos analisando e criando um debate leve por aqui sobre todas as coisas que fazem dessa série uma das melhores que eu já li.

Criada por Kurt Busiek e Brent Anderson, roteirista e desenhista, respectivamente, Astro City é um exercício de criatividade único. Mas para falar dele, precisamos mencionar Marvels, o trabalho que Busiek lançou, através da famosa editora que inspirou o nome do quadrinho, um ano antes.

Em Marvels, Busiek une forças com as ilustrações de Alex Ross para trazer uma história sobre o cotidiano de todos aqueles cidadãos que convivem com os super-heróis do universo Marvel, como Homem-Aranha e a equipe do Quarteto Fantástico. É como se a ideia original de Stan Lee em criar tramas que se interligam entre personagens de séries diferentes em uma mesma edição mensal, mas interpretado de um ponto de vista mais trivial, ou seja, o nosso. A HQ até hoje é um sucesso e está presente em qualquer ranque das melhores obras da editora.

No ano seguinte, quando Busiek decidiu criar uma nova série, agora para a iniciante editora Image Comics, aproveitou a oportunidade para manter a dinâmica de Marvels, só que com novos personagens e um universo próprio. Astro City chegou as bancas pelo selo Wildstorm, da Image, com uma premissa simples e objetiva, mas de portas abertas para incontáveis interpretações e críticas ao formato e o gênero.

Uma das melhores está logo no começo da série, na primeira edição, em uma história intitulada “Em Sonhos”. Na edição temos a figura de um homem nu, porém sorridente, feliz por estar voando sem preocupações. Mas ele logo desperta. Era tudo um sonho e agora ele tem que continuar com sua vida deprimente, como um dos maiores heróis que Astro City já viu: o Samaritano.

Astro City

Assim como Alan Moore fez diversas vezes em sua carreira (com Watchmen Miracleman, principalmente), Busiek nos proporciona uma nova perspectiva do que compreendemos como um super-herói. O que alguém pode ver como uma benção, o herói vê como maldição. Pisando um pouco em território filosófico aqui, apenas para um rápido embasamento teórico (mesmo que eu seja mais um entusiasta no assunto do que um estudante), vamos para o “existencialista” Jean-Paul Sarte. De acordo com o filósofo, a liberdade é uma escolha feita por nós, mas não apenas isso, essa escolha evidencia outras possíveis escolhas. Vivemos pelas nossas escolhas e são através delas que deixamos nossa marca. Mas essa noção de liberdade pode se transformar em uma questão angustiante para quem é e pode mais do que um ser humano normal, como o protagonista da HQ.

O Samaritano é um comentário sagaz de Busiek ao mito da figura mais imponente dos quadrinhos, o homem de aço: Superman. Desde o visual e a fachada de rapaz desajustado para manter as aparências, até mesmo a profissão (assim como Superman, Samaritano também trabalha em um jornal), fica bem óbvia a comparação que o autor faz aqui. Vale lembrar que esse tipo de estudo de personagem baseado em personagens e num imaginário coletivo de outras editoras acontece constantemente em Astro City, é basicamente uma das características principais da série.

Em um dos painéis mais importantes da edição, o Samaritano reflete sobre a possibilidade de viver apenas sua identidade civil, o jornalista Asa Martin. Mas essa decisão significaria não ter mais tempo para atividades heroicas e isso o faz entrar em uma crise existencial.

Astro City

Se ficamos fascinados pelas aventuras do homem de aço com toda sua força e habilidades, o que faz do Samaritano algo moderno e criativo é o paralelo criado entre os dois personagens e o contraste na personalidade. Enquanto um considera sua atividade como super-herói um bem necessário, outro vive o desconforto de dedicar sua vida combatendo o crime e ajudando as pessoas. Isso não implica que o Samaritano seja uma pessoa ruim, ele apenas sofre com o peso da responsabilidade que é colocada em seus ombros.

Como privar o mundo de um poder tão grande? Ele deve sacrificar sua liberdade pelo bem de todos? Esse é um dos debates abertos por Busiek, e isso apenas na primeira edição.

Como já disse, Astro City é um enorme estudo de personagem dentro dos quadrinhos. Utilizar o voo, uma das maiores habilidades do Superman, como uma representação das limitações do Samaritano no mundo real é a melhor maneira de entregar um comentário poderoso. Nos sonhos ele está nu, sem seu uniforme, isso é mais que um sonho, é uma ânsia pela liberdade.

Essa é a precisão com a qual Busiek consegue se aproveitar do universo dos quadrinhos para trazer uma reflexão única e novas perspectivas do que pode ser feito com as narrativas sobre super-heróis.

Astro City
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