A Curva do Sonho | A vida não pode ser segura

A Curva do Sonho | A vida não pode ser segura

14 de setembro de 2019

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George Orr é uma figura peculiar. Com exceção de seu talento para os desenhos, poderia ser apenas um homem simples de rotina calma, mas tem abusado do seu medicamento porque acredita possuir a habilidade de mudar a realidade através de seus sonhos, então permanecer consciente parece ser a melhor opção para evitar qualquer possível catástrofe, já que não é apenas a sua realidade que muda, mas a de todos. Se Orr vivesse em ignorância, talvez tivesse uma vida mais fácil (considerando as circunstâncias), no entanto, ele mantém sua memória e lembra de todas as vezes em que seus sonhos moldaram a existência.

Isso faz com que ele seja “convidado” a atender sessões de terapia com o doutor William Haber, um psiquiatra e pesquisador sobre as condições de sono que acredita no infortúnio de Orr e passa a utilizar seu intelecto e recursos para propósitos pessoais, tentando assim se transformar em um dos homens mais poderosos do mundo. Quando os sonhos do paciente provam-se efetivos, Orr e Haber começam um esquema arriscado onde não apenas a realidade, mas suas mentes, são manipuladas.

Escrito por Ursula K Le Guin, A Curva do Sonho é um romance curto, mas de grande impacto, mais uma vez salientando como a autora trata temas relevantes e perenes de forma inteligente, principalmente considerando que a obra foi publicada originalmente em 1971, apenas dois anos depois do seu clássico A Mão Esquerda da Escuridão.

A humanidade enfrenta a superpopulação e os desastres das mudanças climáticas. Temos um drama ambientado no “nosso mundo”, em Portland, no Oregon, e esse é um elemento importante para entender alguns aspectos da obra, como a pintura do Monte Hood, no consultório de Haber, tornando-se parte da trama. Mas esse é apenas um detalhe quando percebemos que a verdadeira força da história está na maneira como os sonhos se concretizam, com sucesso ou não em sua premissa, apresentando cenários aparentemente utópicos, mas que logo revelam-se cheios de falhas, como quando Orr sonha com um mundo livre da superpopulação, mas para resolver isso acaba inventando uma praga que dizimou parte da população.

A Curva do Sonho

É através da execução dos sonhos que Ursula nos apresenta alguns dos principais temas da obra, com debates filosóficos sobre determinismo e a nossa necessidade de livre-arbítrio. Cada capítulo é anunciado com citações sobre o assunto, a maioria envolvendo algum pensamento de tradição taoista, onde é atribuída uma força poderosa e invisível por toda existência. Além disso, uma das comparações mais óbvias que podemos fazer é com as obras de Philip K Dick, por conta das experiências envolvendo realidades alternativas, mas Le Guin não deixa de trazer sua própria voz, abordando mais uma vez um debate sobre individualidade e racismo, como quando Orr sonha em acabar com a desigualdade racial, mas as coisas não saem do melhor jeito.

“Eliminamos o problema de cor, de ódio racial. Eliminamos a guerra. Eliminamos o risco de deterioração da espécie e o estímulo a linhagens com genes deletérios. Eliminamos… não, digamos que estamos em processo de eliminação… a pobreza, a desigualdade, a guerra de classes, em todo mundo. O que mais?”

Em uma leitura mais rápida como essa, ainda assim temos um excelente desenvolvimento de personagens, mostrando a evolução do passivo Orr, aceitando tudo que lhe é mandado, e do inteligente e malicioso doutor Haber. Logo cedo, também somos introduzidos a Heather Lelache, uma advogada pela qual Orr acaba se apaixonando. Temos uma narrativa que intercala entre núcleos dramáticos, e essa é talvez a parte mais envolvente da obra, que infelizmente sofre um pequeno tropeço em sua segunda metade, quando tenta introduzir eventos cada vez mais absurdos e impactantes, mas acaba ironicamente perdendo um pouco da sua força, antes concentrada em seus personagens e uma premissa consistente. Não é algo que chega a estragar a leitura, mas pode distrair alguns da proposta original do livro.

A Curva do Sonho é mais uma tentativa de Ursula K Le Guin em nos mostrar o potencial humano, seja ele para o bem ou não. Os dilemas de George Orr, por mais que cobertos por algumas camadas de ficção científica, são universais, mostrando como não somos donos de nosso destino e talvez seja melhor assim.

Capa A Curva do Sonho

Ficha Técnica
Título Original: The Lathe of Heaven,
de Ursula K Le Guin
Editora Morro Branco, 224 Páginas
Arte (que brilha no escuro!) de Paula Cruz
Tradução de Heci Regina Candiani

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